domingo, 20 de outubro de 2024
Textos Manoel Bandeira e Mia Couto.
Consoada Manuel Bandeira "Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura
ou caroável), Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: — Alô, iniludível! O
meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, À mesa posta, Com cada coisa em seu
lugar." Consoada Manuel Bandeira (BANDEIRA, 1952) A fogueira Mia Couto "A velha
estava sentada na esteira, parada na espera do homem saído do mato. As pernas
sofriam o cansaço de duas vezes: dos caminhos idosos e dos tempos caminhados. A
fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em volta era o
nada, mesmo o vento estava sozinho. O velho foi chegando, vagaroso como era seu
costume. Pastoreava suas tristezas desde que os filhos mais novos foram na
estrada sem regresso. “Meu marido está diminuir”, pensou ela. “É uma sombra”.
Sombra, sim. Mas só da alma porque o corpo quase que não tinha. O velho chegou
mais perto e arrumou a sua magreza na esteira vizinha. Levantou o rosto e, sem
olhar a mulher, disse: — Estou a pensar. — É o quê, marido? — Se tu morres como
é que eu, sozinho, doente e sem as forças, como é que eu vou-lhe enterrar?
Passou os dedos magros pela palha do assento e continuou: — Somos pobres, só
temos nadas. Nem ninguém não temos. É melhor começar já a abrir a tua cova,
mulher. A mulher, comovida, sorriu: — Como és bom marido! Tive sorte no homem da
minha vida. O velho ficou calado, pensativo. Só mais tarde a sua boca teve
ocasião: — Vou ver se encontro uma pá. — Onde podes levar uma pá? — Vou ver na
cantina. — Vais daqui até na cantina? É uma distância. — Hei-de vir da parte da
noite. Todo o silêncio ficou calado para ela escutar o regresso do marido.
Farrapos de poeira demoravam o último sol, quando ele voltou. — Então, marido? —
Foi muito caríssima — e levantou a pá para melhor a acusar. — Amanhã de manhã
começo o serviço de covar. E deitaram-se, afastados. Ela, com suavidade,
interrompeu-lhe o adormecer: — Mas, marido... — Diz lá. — Eu nem estou doente. —
Deve ser que estás. És muito velha. — Pode ser — concordou ela. E adormeceram.
Ao outro dia, de manhã, ele olhava-a intensamente. — Estou a medir o seu
tamanho. Afinal, você é maior que eu pensava. — Nada, sou pequena. Ela foi à
lenha e arrancou alguns toros. — A lenha está para acabar, marido. Vou no mato
levar mais. — Vai, mulher. Eu vou ficar covar seu cemitério. [...] Durante duas
semanas o velho dedicou-se ao buraco. Quanto mais perto do fim mais se demorava.
Foi de repente, vieram as chuvas. A campa ficou cheia de água, parecia um charco
sem respeito. O velho amaldiçoou as nuvens e os céus que as trouxeram. — Não
fala asneiras, vai ser dado o castigo — aconselhou ela. Choveram mais dias e as
paredes da cova ruíram. O velho atravessou o seu chão e olhou o estrago. Ali
mesmo decidiu continuar. Molhado, sob o rio da chuva, o velho descia e subia,
levantando cada vez mais gemidos e menos terra. — Sai da chuva, marido. Você não
aguenta, assim. — Não barulha, mulher — ordenou o velho. De quando em quando
parava para olhar o cinzento do céu. No dia seguinte, o velho foi acordado pelos
seus próprios ossos que o puxavam para dentro do corpo dorido. — Estou a
doer-me, mulher. Já não aguento levantar. A mulher virou-se para ele e
limpou-lhe o suor do rosto. — Você está cheio com a febre. Foi a chuva que
apanhaste. — Não mulher. Foi que dormi perto da fogueira. — Qual fogueira? Ele
respondeu um gemido. A velha assustou-se: qual o fogo que o homem vira? Se
nenhum não haviam acendido? Levantou-se para lhe chegar a tigela com a papa de
milho. Quando se virou já ele estava de pé, procurando a pá. Pegou nela e
arrastou-se para fora de casa. De dois em dois passos parava para se apoiar. —
Marido, não vai assim. Come primeiro. Ele acenou um gesto bêbado. A velha
insistiu: — Você está esquerdear, direitar. Descansa lá um bocado. [...] Ele
estava já dentro do buraco e preparava-se para retomar a obra. A febre
castigava-lhe a teimosia, as tonturas dançando com os lados do mundo. De
repente, gritou-se num desespero: — Mulher, ajuda-me. Caiu como um ramo cortado,
uma nuvem rasgada. A velha acorreu para o socorrer. — Estás muito doente.
Puxando-o pelos braços ela trouxe-o para a esteira. Ele ficou deitado a
respirar. A vida dele estava toda ali, repartida nas costelas que subiam e
desciam. Neste deserto solitário, a morte é um simples deslizar, um recolher de
asas. Não é um rasgão violento como nos lugares onde a vida brilha. [...] Ela
ajudou-o a erguer-se e serviu-lhe uma chávena de chá. — Bebe, homem. Bebe para
ficar bom, amanhã precisas da força. O velho adormeceu, a mulher sentou-se à
porta. Na sombra do seu descanso viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no
dia e riu-se dos contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o
seu fim marcado. Quando a lua começou a acender as árvores do mato ela
inclinou-se e adormeceu. Sonhou dali para muito longe: vieram os filhos, os
mortos e os vivos, a machamba encheu-se de produtos, os olhos a escorregarem no
verde. O velho estava no centro, gravatado, contando as histórias, mentira quase
todas. Estavam ali os todos, os filhos e os netos. Estava ali a vida a
continuar-se, grávida de promessas. Naquela roda feliz, todos acreditavam na
verdade dos velhos, todos tinham sempre razão, nenhuma mãe abria a sua carne
para a morte. Os ruídos da manhã foram-na chamando para fora de si, ela negando
abandonar aquele sonho. Pediu à noite que ficasse para demorar o sonho, pediu
com tanta devoção como pedira à vida que não lhe roubasse os filhos. Procurou na
penumbra o braço do marido para acrescentar força naquela tremura que sentia.
Quando a sua mão encontrou o corpo do companheiro viu que ele estava frio, tão
frio que parecia que, desta vez, ele adormecera longe dessa fogueira que ninguém
nunca acendera.
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